LEMBRANÇASminhas.

SAUDADES de cada instante.

domingo, 12 de janeiro de 2014

em São Paulo SP



O Homem das Flores

Itaim Bibi, São Paulo. O sol nasceu e cachorros passeiam levados por jovens de outras áreas, devidamente fardados. Bebês enfeitam as padarias em meio a croissant e suco de laranja. Apressados executivos tropeçam na calçada com o olhar fixo em alguma tela.

A padaria até parece que sempre esteve ali, na esquina onde todas as criaturas da região se encontram. Fundada, lógico, por portugueses, se imagina que possui uma lista de convidados e com restritas regras de presença: nas manhas de trabalho, engravatados e mulheres de salto alto, tentando marcar a manicure ou revisando um relatório importante. Nos finais de semana, bem cedinho são os jovens casais e seus bebês de todos os formatos e idades. Um pouco mais tarde o lugar se transforma em pet shop e quando esses resolvem usar o focinho por outras redondezas, chega a vez dos baladeiros, recém acordados e em busca de alguma cafeína.

Nesse vai e vem de bebês, cachorros, jovens casais e cheiro de pão, o homem das flores também parece que esteve sempre ali. Na esquina que divide com a concorrida padaria, porém, ele parece não existir. O nome dele ninguêm sabe, talvez alguma tia ainda lembre. Mas no Itaim Bibi, ele é apenas o homem das flores. Uns 40 anos é o que dariam pra ele. Pode ser mais, pode ser menos, é que quando não se existe, qualquer idade se poder carregar. O homem das Flores mora ali mesmo, em uma Kombi estacionada na esquina da Pedroso Alvarenga com a Renato Paes de Barros. De dentro de sua casa, de lataria branca denunciada por resquicios da cor em meio a ferruzem, ele vive entre pétalas, barro e alguns vasos.
Nada mais é intenso na vida deste homem a não ser o horário da 2a turma da padaria. A maioria dos executivos já se espalharam pela Faria Lima, os bebês já estão no balanço dos braços de suas babás e poucas flores foram vendidas. Mas a esta altura da manha o homem está de rosto lavado e olhos espertos. A camiseta de carnavais passados ou estampada com números de partidos políticos está passada, deixando o fato de ter dormido nela imperceptível.

Alguns metros dali, com o rosto sonolento mas acordado o suficiente para não derrubar o café, Anna anota pedidos. Ser garçonete de padaria nunca foi seu sonho, mas nem perguntando você poderia saber quais, então, seriam seus desejos. Parece que Anna não aprendeu que é possível querer. Talvez por desgosto esqueceu, ou de tanto sonhar apenas olhando da janela de um ônibus não tenha sobrado muito para criar outros cenários. Ainda lembra quando chegou em São Paulo, mas de onde veio já esqueceu. Hoje, apenas o seu trajeto diário cruzando a cidade parece existir. Ao chegar na esquina de todos os dias, alguém a olha amarrar os cabelos cor de carvão, tomando cuidado para não deixar nenhum fio fora da toca higiênica.

- Flores só existem para perfumar, seja um lugar ou os olhos. Repetindo a frase de sua mãe, ainda antes de amanhecer, o homem abre o porta luvas segurado por um velho cadarço. Com uma mão procura o guardanapo da padaria dobrado em quarto partes, abrindo-o lentamente para que as pétalas que ali secam não caiam.
- Margaridas e rosas, diz nosso homem, são as melhores. E como um botânico habilidoso, junta suas palmas e esfrega as selecionadas partes até que se unam com sua colônia barata. - Para perfurmar a alma, só as mesmo as flores -, ele termina.

E todos os dias, após esse ritual, Anna terá acabado de chegar e, amarrando os cabelos, já olha para o céu ou para a TV em cima da porta, tentando prever de quantas horas será seu trajeto de volta.
Um dia seus olhos se encontraram. Ela, ensopada por uma chuva de verão, espera o ônibus para voltar ao seu mundo, enquanto as luzes dos postes se acendem, como vagalumes curiosos. Reclinando-se na Kombi sem perceber, Anna parece não querer ser percebida.

- Quer sentar um pouco? - pergunta ansioso, quem sabe ela finalmente sinta o perfume usado todos os dias em sua espera. Anna acena de leve e reclina a cabeça um pouco mais, fazendo parecer possível pintar a lataria da velha Kombi usando seus cabelos encharcados.
- Não gosto de flores, me lembram funerais - fala baixo, talvez gritando a raiva de nunca ter recebido uma. - Minha mãe queria me chamar de Deise – continua - uma patroa dessa rua falou que é nome de flor, nome de menina feliz.

E antes mesmo que o som de “feliz” pudesse fazer sentido, ela corre acenando para o onibus não esquece-la. Sentada em sua poltrona, Anna suspira aliviada. Já vê em movimento o mundo que não é seu, tentando entender porque não têm nome de flor.

Nenhum comentário:

RAUL

RAUL
RAUL

Twitter